Bem sei que nestes mexericos religiosos não é certamente quem menos preconceituoso se mostrar que leva a sua avante e, ainda que reconhecendo que a minha série O que aprendemos com foi escrita um pouco em tom jocoso e sem grandes preocupações narrativas - não fosse a bíblia um livro multidimensional e baseado no diz-que-disse - há que tirar uma vaga conclusão das quatro histórias que tentei contar.
Caim, Abraão, Ló e Jó são meros personagens de circunstância numa impiedosa fábula que o mundo experiencia. Se por Caim entendermos o José da vila, por Abraão o padre Jacinto, por Ló o católico de domingo e na velhota reformada que assume como bênçãos todas as conquistas dos seus netos conseguirmos vislumbrar vestígios de Jó, estamos não só a encontrar representações com algum grau de fidelidade dos personagens acima referenciados nos elementos constituintes da sociedade portuguesa como também a perceber de que (tão pouco) singelo modo a religião tem influência nas pessoas, assumamos crentes por descarga de consciência. Mas não só estes últimos são visados pela nossa herança religiosa:
Se deus quiser, vai com deus, que deus me acuda, que deus te acompanhe, deus nosso senhor te ajude,
tudo expressões que a maioria de nós (alguns mais descuidados que outros) utiliza no quotidiano, porque os nossos pais já as usaram à nossa frente, porque acreditamos no efeito daquelas palavras, por aflição de circunstância e, verdade seja dita, porque não pensamos em tudo o que dizemos. E vezes também há quando pensamos mas não intelectualizamos a nossa mensagem, o Fernando bem sabia o que isto é pois nunca caiu nesse erro, pobre coitado, tão louco e tão sóbrio.
Independentemente da ficção ou veracidade de Caim, Abraão, Ló ou Jó, parece-me justo afirmar que a) os temos, enquanto sociedade católica, como modelos a seguir - no caso de Jó e Abraão - e modelos a ter em conta - no caso de Caim e Ló - e b) existe quem se preste a fazer pedagogia sobre os seus exemplos. Mas já que tocamos na ferida, também existem os que c) não conhecem as histórias de tais senhores. Por ventura seriam estes, os desconhecedores, os menos afetados pela moral com que somos empapados, pois ao ignorarem o que vou mencionar a seguir, talvez evitassem questionar que deus é este e que autoridade tem ele para me obrigar a ser filicida. Ainda assim, em jeito de conclusão:
Caim
deus não aceitou o seu sacríficio, não lhe explicou motivos para tal e fê-lo andar errante pelo mundo.
deus, sem que nada o justificasse a não ser vontade divina, ordena-lhe que mate o próprio filho, Isaque.
vê-se envolvido numa contenda entre deus e o diabo, que lhe retira as suas posses e a sua saúde por forma a renunciar à sua fé. Jó não o fez.
é materialista, egoísta e não segue os mandamentos de deus. A sua mulher, ao ver a sua casa em chamas, vira-se para trás e é transformada numa coluna de sal.
Não espero uma reacção em concreto ou particular em relação àquilo que escrevi, apenas posso imaginar um alcance desde o choque até à indiferença. Não obstante, algo para mim é evidente: quem se mete com deus sai tramado.