sexta-feira, 16 de novembro de 2012

uma história milenar

Quando os humanos desceram à Terra, encontraram devastação. Tinham ido a Marte à procura de vida e esqueceram-se desta. Inocentaram-se imediatamente do infortúnio com destemida ingenuidade, como quem espera que janeiro não seja chuvoso. Até à réstia das últimas esperanças, resistiram às críticas dos outrora presunçosos detentores do mundo, os que injuriosamente foram acusados de impedir o progresso.
Por lá, um pirata recebeu-os, pala no olho direito, intacto, mero personagem estereotipado. E foi com o outro que viu surgir uma mão nefasta a cobrir-lhe o rosto, a vedar-lhe a palavra suplicante, até mais não restar pirata malvado.
-Sê-o hoje e conquista, vociferou o capitão dos humanos, eleito por esse escrutínio ideológico a que chamamos democracia. E fez-se uma luz agonizante: tínhamo-nos condenado.
E já sem pirata viram-se livres para partir na aviltante busca. Desprezaram o palhaço, que subitamente não tinha graça, até chegarem a mais um dispensável, desta feita o polícia. Roubaram-lhe, jocosos, as balas, devolvendo-as no seu peito. E prostrado no chão ficou.
-Olho por olho, dente por dente - gritaram ilesos, fugitivos à sorte de mandamento tão taxativo. E partiram em busca do próximo.
Grisalho, nariz repulsivo, olhos postos no céu. Sai disparado um de bigode que exala pelas narinas um ódio histórico, à medida que o homem, taciturno e hesitante, recua, a passos largos, qual Nostradamus a encontrar La Palisse. Um chicote nas costas largas mas não tão largas que suportassem tamanha culpa:
-Perdoe-lhe o Senhor que eu não arranjo forças, já sou exaustão e ainda agora começou.
E várias e devastadoras chibatadas depois puseram-no numa cela, de onde não se ouviu pio.
Chamaram então um auto-denominado rei, sem reino nem castelo físicos, cabelos e barba longos. Julgaram-no em praça pública com um fascínio aterrador, até à última das provocantes perguntas:
-Porque é que não te salvas se Ele não se mostra?
E os homens perguntavam-lhe à condição, pois se o fizesse, teriam de o deixar partir.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Preces aos deuses

As orações que deus atende são, à partida, aquelas que lhe enviamos com sinceridade e sinceramente lhe interessam, não fosse a harmonia com o seu plano um critério fundamental nesta seleção, e a oração mal intencionada um atentado contra o futuro que nos foi traçado, o fogo e as chamas que queimam corpos, as privações da vida - e arrependimentos? - em série. Já as orações insinceras - sabemo-lo por caim - são votadas a uma pena suspensa, continuam recorrentes nos lábios daqueles que as proferem, mas no fundo vagueiam errantes, são pelos mais castos assinaladas e embora, muito embora, ouvir orações insinceras seja um princípio violador das directrizes para admissão de preces no reino dos céus, estranhamente lhes é dedicada uma atenção sempiterna, ontem caim, hoje um servo ingrato, amanhã um cordeiro à beira do sacrifício.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

quando urge acreditar/escrever



A urgência de se escrever compreende-se no momento: quem quer escrever usa as palavras como um aerossol, ou como última prece no dia do julgamento, um último recurso.
O crente converte-se numa espécie de último reduto da sanidade, na medida em que só a sua crença autoesculpida lhe permite a não rendição à urgência da escrita; outros há, que com ingenuidade macabra, lançam os dados de Pascal e fazem uma cama aconchegante à sua consciência.
Outra imagem recorrente é a de um shofar que toca e tem o mesmo efeito de um trovão: a multidão que se reunia nos tempos idos para celebrar pelo som mais um sacrifício, desta vez agrupa-se de mãos juntas, com reverência e uma prece alada prestes a perder-se pelos céus:
- "oh senhor, poupa-nos mais um dia, acaba com a ira desta mãe natureza que te ousa ultrapassar".
E mais um Sandy acontece. Um certo sexismo prevalece. O mundo descansa porque algures foi impedido que mais um tanso se sentasse - a ele e aos seus amigos imaginários - na cadeira mais poderosa deste mundo.