segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O que aprendemos com... Jó, parte 3

Na continuação da série O que aprendemos com, onde já escrevi sobre Caim e Abraão, surge Jó, aquele que é provavelmente o maior exemplo de resiliência da Bíblia e, paradoxalmente, mais um a quem deus - e desta vez nem só ele, que isto vai meter o diabo pelo meio - testa, deixa testar, no fundo brinca, até que limites não se sabe.


Quando na gíria se diz que depois da tempestade vem a bonança, certamente se almejam tempos melhores, melhores condições, uma inversão de circunstâncias. Para Jó nada disto fazia sentido. Eram muitas bonanças e tempestades nem vê-las, ia cuidando imperturbável da sua legião principesca de animais e servia a deus de coração, agradecendo-lhe tudo o que tinha, como lhe competia.

Não se sabe se numa demonstração de mau humor ou porque também queria aparecer - que a permanência exclusiva na ribalta é condição do mal - surge satanás, vindo do nada, em amena cavaqueira com deus, prestes a atentar contra mais um dos seus servos. Deus a impedir que o anjo maldito fizesse Jó tropeçar nas suas múltiplas armadilhas parece à partida, uma intervenção simples, uma consideração a tecer, não fosse este deus capacitado incomensuravelmente, dotado de habilidades sobre-humanas, teria de sê-lo, criou a terra e os céus, criou o homem e a mulher, ajudou a construir tantos impérios, acabou com raças e ainda hoje, tanto quanto se sabe, provoca trovões quando, irado por mais uma derrota, flexiona os músculos depois de mais uma partida com os anjos num dos muitos complexos de bowling dos céus.

Divertido com tamanhas maldades que perpetrava, satisfeito perante o pranto e o sofrimento de Jó, satã ousou fazer deste servo um instrumento das suas frustrações, não aquelas mundanas que nós temos por não termos uma certa nota num teste, mas elevadas a mil, a frustração diabina, capaz de pôr em causa a vida de um irmão. Se bem que é certo que muita gente se vê afetada deste génio e puxa do gatilho, assaltando sem apelo nem agravo a vida de um semelhante, ao contrário do que se verifica neste caso, em que Jó se viu apenas (de um momento para o outro e com a mesma conduta de sempre) sem as suas muitas posses - está bem que não fazia ideia que era um mero adereço numa peça de marionetas que deus e o diabo estavam a encenar, mas isso é um caso à parte, quem é fiel mantém-se fiel e Jó nunca pensou duas vezes sobre a sua fé. Um pouco menos convencida estava sua mulher Sara, que até lhe aconselhou a renunciar à sua fé, provavelmente farta de ver o seu marido sofrer às mãos de tão malvada criatura - perdoe-lhe deus pelo esgotamento e ele certamente o fará porque viu tudo de cima e compreenderá que as mulheres também têm as suas limitações, isto não é ser misógino, foi um e não o outro sexo a ser inventado com recurso ao oposto, mas tudo bem.

Seria certamente útil dissertar sobre que relação têm deus e o diabo além do bem e da sua antítese, mas lá está, todo o herói precisa do seu anti-herói. Imaginar o Harry Potter sem o Lord Voldemort ou os homenzinhos dos sabres de luz sem o Darth Vader até angustia, enfim, contra quem lutam, o que é que ambicionam, qual a calamidade que se vêem iminente e ininterruptamente a impedir? Parece que eu já tinha chegado a uma conclusão a roçar a blasfémia, dá a entender que deus precisa do diabo para nos fazer ver quão pecaminosos somos, mas ao mesmo tempo usa-o para servir de álibi tranquilizador das nossas ações, todos nós sabemos quão mal nos sentimos quando inertes limpamos o salão ou soltamos um pantufinhas e, nesse caso, convém sempre ter um bode expiatório abominável em quem possamos por as culpas de tamanhos sacrilégios, ou não tivéssemos nós sido criados à imagem de um barbudo e não de um cornudo - vá de retro satanás - pelo que está justificada a existência da criatura maligna, não mais toquemos no assunto até ao fim dos tempos, não mencionemos gigantes adamastores nem fadas nem duendes, todos eles frutos da nossa fértil imaginação, há coisas com as quais não vale a pena brincar e, já todos estamos avisados, deus não tem por obrigação revelar tudo, além dos seus caminhos serem inescrutáveis.

2 comentários:

  1. Eu acho que o mundo sem religiões seria um pouco mais atrevido a novas experiências e poderia haver menos problemas diplomáticos...mas isso é o que penso, pode ser que eu esteja errado.
    Concordo com o fato de que sempre se deva existir um personagem contrario ao principal - no caso, Diabo contrário a Deus. Acho engraçado o fato de haver tantas pessoas recebendo possessões demoníacas, e jamais ter visto ninguém recebendo um espírito de luz.
    Enfim, prefiro não brincar com essas coisas, de fato. Cada um acredita no que quiser, e devemos ter respeito mútuo. Só isso me basta :)

    ResponderEliminar
  2. Olá Phanzer.
    À partida, uma conjuntura mais secular possibilitaria uma solução diplomática mais imediata no conflito israelo-palestiniano, por exemplo. Se quisermos ir ainda mais longe, a história e a religião são hoje barreiras fulcrais ao estabelecimento da paz, visto que não se dá o braço a torcer e se fica com medo de repercussões no pós-vida, se é que me faço entender.

    O conceito de herói + anti-herói que trago à baila na narração do episódio de Jó é algo à margem da sua própria história, sendo na verdade apenas um olhar mais descontraído sobre o pânico real com que algumas pessoas vivem o que desconhecem ou não compreendem, nomeadamente os fantasmas, a magia negras e o diabo a quatro.

    No fundo, acaba por ser como disseste, o respeito mútuo é fundamental quando se lida com assuntos tão sensíveis e embora eu assuma que a minha escrita pode ser provocatória eu não sou de todo um provocador gratuito, pelo que a subtileza na forma como escondo o que quero realmente dizer talvez me ilibe. Ou me condene mais, que não sou ninguém para definir a minha própria penitência.

    ResponderEliminar

Tente especificar o seu comentário ao post em questão.